Comentário

Combate à fraude fiscal:<br>monumento à hipocrisia

Miguel Viegas

A fraude e a evasão fiscal cons­ti­tuem uma prá­tica ha­bi­tual e ge­ne­ra­li­zada em todas as so­ci­e­dades ca­pi­ta­listas. Esta re­a­li­dade, es­con­dida du­rante dé­cadas, não re­sistiu à pu­bli­cação de um con­junto de es­cân­dalos que aba­laram a opi­nião pú­blica e for­çaram o poder po­lí­tico a anun­ciar planos de in­ten­ções vi­sando com­bater este fla­gelo que é tanto mais es­can­da­loso quando coin­cide com po­lí­ticas de aus­te­ri­dade que atingem for­te­mente as po­pu­la­ções e os tra­ba­lha­dores. Foi o Offsho­re­leak em Abril de 2013, de­pois o Lux­Leaks em No­vembro de 2014, mais tarde ainda o Swis­s­leaks em Fe­ve­reiro de 2015, todos estes es­cân­dalos im­pli­cando di­rec­ta­mente go­vernos de toda a União Eu­ro­peia su­por­tados por par­tidos po­lí­ticos per­ten­centes às grandes fa­mí­lias eu­ro­peias do Par­tido Po­pular Eu­ropeu, do S&D (so­ciais-de­mo­cratas) e do ALDE (li­be­rais). O caso do Lux­Leaks, que re­vela a exis­tência, ao longo de mais de 20 anos, de acordos fis­cais entre o go­verno e mais de 300 mul­ti­na­ci­o­nais, é par­ti­cu­lar­mente elo­quente na me­dida em que im­plica di­rec­ta­mente Jean Claude Juncker, ac­tual pre­si­dente da Co­missão Eu­ro­peia e mi­nistro do go­verno do Lu­xem­burgo na al­tura dos de­litos. De forma re­su­mida, estes acordos per­mi­tiam às mul­ti­na­ci­o­nais drenar os seus lu­cros para o ter­ri­tório lu­xem­bur­guês onde eram tri­bu­tados a uma taxa ir­ri­sório de cerca de meio por cento.

Apesar da sua am­pli­tude, estas re­ve­la­ções cons­ti­tuem apenas a ponta do ice­bergue. Este poder do­mi­nante das em­presas mul­ti­na­ci­o­nais de­corre do pro­cesso de li­be­ra­li­zação eco­nó­mica e des­re­gu­la­men­tação fi­nan­ceira en­ce­tado há 30 anos pelas po­lí­ticas de Re­agan e That­cher. Ao longo das úl­timas dé­cadas de­sen­volveu-se uma au­tên­tica in­dús­tria es­pe­ci­a­li­zada na fraude, evasão fiscal e la­vagem de di­nheiro que se mo­vi­menta numa com­plexa teia de pa­raísos fis­cais, sempre com o pro­pó­sito de li­mitar ou mesmo eli­minar o pa­ga­mento de im­postos por parte das grandes em­presas mul­ti­na­ci­o­nais. As quatro mai­ores em­presas de con­sul­ta­doria no cha­mado pla­ne­a­mento fiscal agres­sivo, co­nhe­cidas com as «big four», pagam re­gi­a­mente os seus qua­dros de topo, quase todos eles re­cru­tados junto dos go­vernos e das ad­mi­nis­tra­ções fis­cais dos prin­ci­pais países ca­pi­ta­listas.

É por­tanto neste con­texto que a Co­missão Eu­ro­peia e o seu pre­si­dente Juncker anun­ci­aram em Junho úl­timo o seu Plano de Acção, eri­gindo ao mesmo tempo o com­bate à fraude e à evasão fiscal como uma das suas dez pri­o­ri­dades. Este plano de acção as­senta em dois pi­lares fun­da­men­tais: o pri­meiro des­ti­nado a criar con­di­ções para li­mitar o re­curso aos preços de trans­fe­rência e ga­rantir a tri­bu­tação dos lu­cros onde são cri­ados e o se­gundo re­la­ci­o­nado com a trans­pa­rência, in­cluindo uma maior co­mu­ni­cação entre as ad­mi­nis­tra­ções fis­cais re­la­ti­va­mente a acordos fis­cais e a obri­ga­to­ri­e­dade das em­presas mul­ti­na­ci­o­nais de­sa­gre­garem os seus re­sul­tados por países onde operam. Con­tudo, à me­dida que o pro­cesso avança, mais vi­sível se torna a in­fluência po­de­rosa das mul­ti­na­ci­o­nais sobre as ins­ti­tui­ções eu­ro­peias e sobre os par­tidos que as su­portam. Assim a pro­posta de troca ime­diata de in­for­ma­ções entre ad­mi­nis­tra­ções na­ci­o­nais sobre acordos fis­cais com em­presas mul­ti­na­ci­o­nais foi já con­si­de­rada como uma de­si­lusão na me­dida em que o seu âm­bito foi subs­tan­ci­al­mente re­su­mido e a sua apli­cação adiada para 2017.

Um outro epi­sódio ocor­rido esta se­mana no Par­la­mento Eu­ropeu ajuda-nos a com­pre­ender me­lhor até que ponto todo este pro­cesso de in­ten­ções não passa de uma fa­chada des­ti­nada a iludir a opi­nião pú­blica sobre as reais in­ten­ções da Co­missão e do Con­selho em com­bater a fraude e a evasão fiscal. Apesar de tudo ter sido feito por parte do Par­tido Po­pular Eu­ropeu e do S&D (so­ciais-de­mo­cratas), foi criada uma Co­missão Es­pe­cial des­ti­nada a in­ves­tigar todo este pro­cesso li­gado ao Lux­Leaks. Como seria de prever, esta co­missão, desde o início, teve de en­frentar um con­junto de obs­tá­culos re­la­ci­o­nados com as au­di­ên­cias (com des­taque para o pre­si­dente Juncker que acabou por vir à Co­missão de­pois de múl­ti­plas in­sis­tên­cias) e com o acesso a do­cu­mentos. Em 1998, o ECOFIN, con­selho dos mi­nis­tros das Fi­nanças, criou o grupo «Có­digo de Con­duta sobre a Fis­ca­li­dade das Em­presas». Sa­bemos que é ao nível deste grupo de tra­balho que se de­sen­rolam todas ne­go­ci­a­ções re­la­ci­o­nadas com estas ma­té­rias. Nesta me­dida, a con­sulta dos ma­te­riais e em par­ti­cular das actas do grupo «Có­digo de Con­duta» é es­sen­cial para cla­ri­ficar o po­si­ci­o­na­mento quer da Co­missão Eu­ro­peia, quer dos es­tados-mem­bros. Pois bem, de­pois de muita in­sis­tência, e já na recta final do pe­ríodo de vi­gência da Co­missão Es­pe­cial, lá foram dis­po­ni­bi­li­zados os do­cu­mentos, mas apenas sobre es­tritas con­di­ções que im­pedem uma con­sulta mi­ni­ma­mente séria. Assim, os do­cu­mentos es­tarão dis­po­ní­veis apenas du­rante uma se­mana. A sua con­sulta é feita numa sala da Co­missão Eu­ro­peia e im­plica a as­si­na­tura de um termo de con­fi­den­ci­a­li­dade. Não é au­to­ri­zado qual­quer tipo de re­gisto e nem se­quer es­tava au­to­ri­zada a to­mada de notas. Pe­rante a nossa in­sis­tência e in­dig­nação, a res­posta foi curta e la­pidar: é pos­sível tomar notas, mas estas não podem ser le­vadas para casa. Pa­la­vras para quê?...




Mais artigos de: Europa

Não ao TTIP, não à pobreza

Cerca de duas mil pes­soas ma­ni­fes­taram-se, dia 17, em Bru­xelas, sob a ban­deira das Eu­ro­mar­chas, que en­cer­raram uma série de ac­ções contra o TTIP, a aus­te­ri­dade e a po­breza.

Médicos protestam

Mais de 20 mil pes­soas ma­ni­fes­taram-se, dia 17, em Lon­dres, contra os novos ata­ques ao Ser­viço Na­ci­onal de Saúde, desta vez através de res­tri­ções aos mé­dicos.

Cumprir as resoluções da ONU

Miguel Viegas, o deputado do PCP no Parlamento Europeu, integrou uma delegação do GUE-NGL, que visitou, nos dias 10 e 11, o Saara Ocidental, no âmbito das comemorações do dia nacional. Durante a estadia, o deputado encontrou-se com representantes do...

Combater a pobreza infantil

O relatório de iniciativa da deputada do PCP, Inês Zuber, intitulado «Redução das Desigualdades com especial enfoque na Pobreza Infantil», foi aprovado, dia 13, na Comissão de Emprego e Assuntos Sociais do Parlamento Europeu. O documento, em cuja elaboração...